A cadência triste e circular desta melodia, o barroco, com as suas redundâncias, escondendo o essencial. Como se o essencial fosse proibido, como se despido de artifícios fosse forte, bruto, rude demais. Como se intolerável, insustentável, incompreensível… E por isso as explicações, os exageros, desnecessárias comparações. Por isso repetida e retorcida, a embelecida melodia! … O diálogo rebuscado dos instrumentos, elevando-se no ar, descrevendo cornucópias, enquanto suavemente desliza, regressa ao ponto de partida, sem nunca de lá ter saído.
Nota após nota, sustenidos e bemóis, pausas, claves e escalas, pontos minúsculos, como formigas em carreiro, passeiam pela pauta, e a linguagem que alguns lêem, apenas alguns a entendem, oh, quantos a sentem? Quantos conseguirão alcançar a beleza do silêncio, a sua terna harmonia? Porque o silêncio ecoa, percute dentro de nós, quando o sentimento não se cala… Porque o silencio é de ouro, e precioso, e raro, e, embora denso, incrivelmente transparente!
Aplausos! Não poderia esperar menos para este concerto! Cada nota afinada, bem tocada, coordenada, magistralmente interpretada, divinamente regida. O que isto me diz? E o que me diz? Nada!
Compreendes? Perdeste-te também tu entre rococós, esqueceste a geometria clássica, simétrica, a simplicidade, a beleza despida… os corpos espelhados, despojados de artifícios, encontrados no rebuliço constante, porque naquele instante, não é preciso dizer nada.
Entendes? Lembras o princípio? Quando tudo era simples? Mas nem por isso, nem nunca, banal! Essencial!
O início da vida, a primavera a despoletar cores e aromas nas tímidas flores que colhemos juntos no imaginário jardim! Sementes darão frutos, corar-se-ão ao fogo de ouro resplandecente do astro rei. Ceifados os campos, cantadas as vindimas, e, no arder da lareira, esperar de novo o novo, o começo, o fim da espera. Ciclo que se cumpre…
Apetece-me rasgar a água, o meu corpo como uma navalha, sangrar a dívida de prazer que tenho com o meu ser! Deslizar entre o verde ondulado, sentindo na minha pele toda a força das marés, o girar da terra, o satélite da lua, o espaço. E ainda escuto o murmúrio do mar, as ondas, o som que produzem. É puro! Escuta! Sente! Em cada vaga, a mesma cadência, o mesmo sussurrado desejo, o salgado beijo do mar na areia, o seu suave embalar… E quando revolto, irado, o mar salgado me quiser afogar, nado até à costa, deixo-me flutuar.
Sente na pele a brisa, no ar, o cheiro da maresia, e dos fins de tarde em qualquer piscatória aldeia, a nostalgia, a aventura, a dúvida de regressar. Porque o mar companheiro, o mar traiçoeiro. E o coração em sobressalto, de tanta espera, aprendeu o mar a amar.
A costa recortada pelo continuo impacto da agua, escarpas, precipícios, grutas frias e húmidas, escorridas estalactites de sólidas lágrimas, e as pequenas plantas e pássaros, que riem das tempestades, que peitam o frio e persistem na encosta.
Todo o som cadenciado das ondas, recuando e avançando, a azafama das gaivotas, berrando a fome de peixe, a fome de peixe… e o peixe feito milagre, o vinho feito sangue, e o sangue derramado para nossa perdição! Porque nesta costa me perco, me deixo levar… porque te recordo, porque tu, sempre aqui, me acompanhas. As cigarras, juraria que é teu nome que cantam… e o cheiro que vem da terra, o cheiro do fim de tarde, do sol se pôr, do regresso a casa, de mais uma etapa cumprida, invadindo as narinas, preenchendo os sentidos…relaxar, inundar-me de paz, diluir-me na natureza, unir-me a ti, que me aguardas, descalço, tronco nú crestado pelo sol, sentado na sombra do alpendre, cantarolando uma música que já tinha esquecido. Casa! Meu lar, as brancas paredes caiadas, as espessas e frescas paredes que guardam e aguardam o meu regresso. O meu pouso seguro.
Porque férias são férias, percorremos a costa da preguiça com a mochila às costas, com a leveza duma bailarina num lânguido bailado, em pontas de pés…silenciosamente…